domingo, 22 de junho de 2008

Herdeiros de Maio

Como prometido, o artigozinho que fiz sobre Maio de 68.


Herdeiros de Maio
Hugo Belarmino de Morais


Este artigo tem endereço certo. Vai para aqueles e aquelas que - como eu - acreditam que a Universidade e os estudantes são responsáveis na construção de alternativas à dominação. E nisto, como buscarei demonstrar, somos Herdeiros de Maio de 68. Aos companheiros do Movimento Estudantil da UFPB (especialmente ao Movimento Levante e ao DATAB) e aos companheiros da Extensão Popular na Paraíba e no Brasil (sobretudo o ENEC-PB, NEP-Flôr de Mandacaru, ANEPOP e RENAJU). Não é um texto para agradar por completo, mas para incomodar por completo. Se for assim estarei satisfeito.


Apesar de ter sido um momento histórico incompreendido (e até refutado) por muitos militantes, os acontecimentos de Maio de 68 deixaram marcas que, bens delineados e atualizados aos nossos tempos, podem apontar caminhos interessantes para o reconhecimento do segmento estudantil enquanto movimento social e detentor de pautas que extravasam qualquer compreensão de Universidade ou de Educação, para permear a própria visão de mundo, atrelada à classe trabalhadora.
Esse reconhecimento está presente nos espaços do movimento estudantil autônomo e criativo, do qual falarei mais à frente e nas práticas de ressignificação da idéia de Universidade, presentes notadamente na Extensão Popular.

O que “foi” Maio de 68?

Contar a história é sempre um trabalho ingrato, e de dupla face: é trabalho de tradução e de traição. Por isso, tentarei somente contextualizar os acontecimentos de Maio de 68, podendo pecar por excesso ou por esquecimento. O mais importante aqui é perceber que, se adotarmos uma perspectiva dialética, Maio de 68 não foi, ele “é” e “está” sendo.
Diante de uma sucessão de debates e embates políticos que envolviam a França, sobretudo com a insatisfação internacional com a Guerra do Vietnam (e após a maior manifestação da história dos EUA, com mais de 300 mil pessoas nas ruas, em Nova Iorque em 1967) e com os rumos da política do General Charles de Gaulle, o segmento estudantil organizado em diversos grupos de esquerda (trotskistas, leninistas, anarquistas, comunistas, maoístas, etc) advindo de um amadurecimento por conta de erros anteriores cometidos em organizações de base e de críticas ao distanciamento da Universidade das pautas sociais mais latentes, protagoniza um momento de explosão de idéias, críticas radicais ao modelo de Universidade (considerada campo da produção intelectual para manutenção da exploração) e aos próprios modelos de organização da Esquerda dita tradicional e organizada nos grandes Partidos (principalmente o PCF- Partido Comunista Francês) e nos Sindicatos (sobretudo a CGT, Central Sindical vinculada ao PCF). Desde Março de 68, com a criação do Movimento 22 de março, organismo independente do movimento estudantil que alavanca pautas políticas com movimentos de massa na cidade de Nanterre, o movimento estudantil francês demonstra que algo de muito importante começa a aparecer, seja na percepção do papel da universidade, na compreensão da cultura, na organização da classe trabalhadora, no papel da comunicação e da criatividade, no diálogo sincero e horizontal com o povo na busca por emancipação.
Eis que essas explosões redundam em barricadas nas ruas de Paris onde os estudantes são violentamente reprimidos, momento em que outras organizações, nomeadamente sindicais, vão às ruas para protestar contra a repressão e questionar a política de Charles de Gaulle. Pichações e frases de efeito nunca antes pensadas como “místicas da revolução” espalham-se pelos muros da cidade, sendo verdadeiras sínteses de uma utopia revolucionária do cotidiano. As estruturas de poder nunca haviam sido tão questionadas e com tanta legitimidade prática do que por aqueles jovens utópicos que carregavam os emblemas do “Só a verdade é revolucionária”, “É proibido proibir”, “Desobedeça primeiro, depois escreva nos muros!”, “A Revolução tem de deixar de ser para existir!”, “Ser livre em 1968 é participar”, entre outros.
A partir de então, a França “pára”. Várias manifestações nas ruas todos os dias, greve geral de mais de 10 milhões de trabalhadores, a ocupação da Sorbonne e de várias fábricas demonstram o grande potencial de transformação daquele momento histórico, em que estudantes e trabalhadores percebem que é possível quebrar a cadeia de dominação através de luta, mobilização, informação e negação dos paradigmas até então estabelecidos. Questionamentos estes que parecem não ser tão amplos que tocam não só o “bloco institucional” repressivo personificado no General De Gaulle mas também à própria esquerda burocratizada, que detinha um certo monopólio de “como fazer a Revolução”, vinculada às estruturas clássicas de Partidos e Sindicatos. Nenhum intelectual de esquerda, nenhum Partido político, nenhum segmento específico da sociedade, nenhum Deus, nenhum paradigma moderno ou pós-moderno foi capaz de prever ou explicar e assim reivindicar-se “pai ou mãe” de Maio de 68, não porque eram espontâneos ou naturais aqueles acontecimentos, mas justamente pelo contrário: a percepção da exploração material e a sua necessidade de transformação levam uma coletividade heterogênea, com os jovens estudantes à frente (mais propriamente, ao lado), a “desnaturalizar” a exploração e buscar os responsáveis...
Passam-se os dias de maio e o que ninguém esperava (ou todos esperavam?) acontece... mesmo com uma conjuntura política e social extremamente favoráveis, construção nunca antes vista na França (alguns companheiros afirmam ter sido muito mais do que suficiente para uma Revolução), a repressão do Governo de De Gaulle, por um lado, e a própria esquerda burocratizada, por outro, arrefecem os objetivos e a utopia revolucionária e a Revolta se enfraquece, mesmo com alguns focos de luta que perduram até Junho, como no Norte da França.
A despeito das questões mais pontuais que permearam esses acontecimentos desde a sua explosão até o seu arrefecimento, o que gostaria de pontuar é a importância estrutural e simbólica de Maio de 68 no “estar sendo” da nossa militância política, seja no movimento estudantil ou no movimento extensionista. A pouco tempo participei de uma palestra sobre Maio de 68 muito interessante. Nela o palestrante encara os teóricos sobre Maio de 68 de duas formas: ou são coveiros ou são embalsamadores.
A primeira idéia é vinculada à direita que quer cada vez mais enterrar Maio de 68 (Sarkozy é membro nato desse grupo) porque foi esse o momento da ruína dos valores e princípios morais mais tradicionais na França, que ainda é “órfã” de valores fortes e arraigados na sociedade, perdidos em 68.
Já os embalsamadores, mais interessantes para nós, são aqueles que tratam de Maio de 68 como uma pérola, uma dádiva divina que não pode ser tocada: no máximo a podemos apreciar e revelar suas mais sublimes características, mas nunca ousar repeti-la, questioná-la ou tomá-la por referência para ações do presente. Transformam Maio de 68 em fato importante do passado, mas sem referência nem com o presente nem com o futuro. Esse papel é bem característico de uma esquerda pedante, de pessoas que, mesmo militando contra-hegemonicamente agora, não se sentem responsáveis com aqueles acontecimentos de outrora.
O palestrante elencava várias formas de fazer esse papel de coveiro e de embalsamador, dos quais o mais importante com certeza é a divisão entre o Político e o Cultural em Maio de 68, como fenômenos estanques e independentes. Não cabe aqui uma análise mais profunda sobre essa divisão, mas o fato é que se há algum momento na história do Séc. XX que o político e o cultural caminharam muito juntos, este foi Maio de 68. A negação das formas de dominação política interage dialeticamente com a negação do papel da cultura alienante, abrindo perspectivas criativas e de mudança do status quo. A idéia de que “a arte está morta, não consuma seu cadáver” radica uma transformação que hoje é personificada no trabalho criativo dos vários movimentos de contracultura, nos cines-debate, nas calouradas que valorizam a cultura regional, nas místicas, etc. Reconhece-se que há um poder simbólico na cultura de massas que precisa ser constantemente questionado.
Tendo isso em consideração, acredito que a nossa práxis política, bem observada, guarda muito dessas relações entre cultura e política, entre objetividade e subjetividade, entre teoria e prática, enfim, na quebra de dicotomias burras que só nos levaram a recortar o mundo e não perceber suas interações dialéticas. Dividi esta parte em tópicos, meramente ilustrativos, pelo que não considero (pois não quero ser nem embalsamador, muito menos coveiro) qualquer segmentação nessas breves reflexões que fiz e que se chegam ao fim. A idéia é demonstrar o mais didaticamente possível os pontos que identifico entre Maio de 68 e o que vimos fazendo na contra-hegemonia (às vezes prevista, às vezes não) por aí.

Somos herdeiros de Maio porque...

...buscamos na Universidade um espaço de crítica ao modelo atual de exploração, que não privilegia a classe trabalhadora e os grupos socialmente vulneráveis.

Não nos enganemos, desde os primeiros modelos a Universidade sempre foi espaço de hierarquização, controle e produção de saberes úteis à manutenção do status quo. Se buscamos o contrário, o papel dos estudantes deve ser sempre de questionamento das estruturas também hierarquizadas, mitificadas e distanciadas do contexto social. Passados 40 anos, a Universidade continua sendo espaço hegemonicamente de reprodução do Capital, mas pode ser também espaço dialético de criação de autonomia, de contra-hegemonia e de crítica radical à sociedade em que vivemos. Depois de 68, o papel esquizofrênico do intelectual que fala sobre o que é Revolução, como ela acontece, mas que não percebe quando ela passa à sua porta deve ser deixado de lado. E aqui não falo do “grande dia” maximalista de algumas correntes marxistas que se preparam todos os dias para a Revolução que inevitavelmente chegará. Falo do papel cotidiano do intelectual na construção da crítica. A crítica só é Crítica se tiver conseqüências na práxis.

...percebemos na Extensão Popular um espaço para além da Universidade, uma busca contínua pelo respeito aos saberes construídos nas diversas comunidades e nos movimentos sociais e que ratificam um compromisso pela emancipação social do homem através da Educação Popular.

O diálogo realizado entre os estudantes e os trabalhadores através de cartazes, panfletos, ocupações, palavras de ordem, conflitos com a polícia, muros pichados, etc., foi uma forma genuína, sincera e feliz de demonstrar que as portas da Universidade deviam estar abertas aos trabalhadores e que o conhecimento ali produzido deveria servir a estes. Por outro lado, os estudantes deviam ser recebidos pela classe trabalhadora nesse diálogo contra a dominação. Procuramos – mesmo com as limitações institucionais – realizar esse diálogo com os atores sociais que são as principais vítimas dessa situação de exclusão, através da Extensão Popular. Vimos na Educação Popular uma possibilidade concreta de estreitar os laços, sem assistencialismos ou voluntarismos egocêntricos, mas sim fraternalmente revolucionários, entre Universidade e Sociedade, entre Objetividade e Subjetividade, entre o Eu e o Outro no qual me reconheço e luto da mesma luta.

...percebemos que é possível construir estruturas autônomas e eficazes de gestão e organização da luta social (seja no movimento estudantil ou não), em que as decisões são coletivas e a descentralização é fundamental

Maio de 68 mostrou que não precisamos de estruturas totalmente rígidas e hierarquizadas para organizar a luta social. Mostrou até que elas, em determinados aspectos, atrapalham a organização e limitam as possibilidades de intervenção política. Partidos e Sindicatos (não há aqui qualquer aversão a essas estruturas, somente apontamentos críticos, que surgem com maior força a partir de 68) não são os únicos espaços de construção de uma luta social ampla. A idéia de Sociedade Civil enquanto espaço de construção da hegemonia, protagonizada por diversos atores, entre eles movimentos sociais, associações (institucionais ou não), coletivos independentes, grupos identitários, etc., só pode ser percebida com mais clareza depois de Maio de 68, e temos responsabilidades na construção desta multiplicidade de opções. A estrutura que devemos defender é essencialmente democrática, buscando incentivar a idéia de que planejamento, participação e execução de tarefas são responsabilidades de todos, e não somente de uma parte da organização. Este princípio está sempre em construção e as entidades precisam buscar, através de ações concretas, o seu fortalecimento, para ampliação de participantes, envolvimento da comunidade estudantil nas pautas e estreitamento entre o que temos e o que queremos.

...porque acreditamos que o papel da cultura é fundamental na construção dos diálogos emancipatórios e na denúncia (poética ou não) das estruturas de exploração e do papel alienante da mídia de massas


Maio de 68, entendido como Revolução Cultural, é tema recorrente. Sejamos também co-participantes de uma modificação desse modelo. A criatividade, a comunicação alternativa, o uso de instrumentos audiovisuais, a mística, a dinâmica, as oficinas, todos esses instrumentos de atuação contra-hegemônica são necessários e importantes na construção da crítica, sobretudo pela sua função de sensibilização (subjetividade é muito importante) e sua possibilidade de fortalecimento das identidades.
Sons, batuques, cirandas, abraços, beijos, lágrimas, textos, poemas, poesias, teatros, enfim, sintetizar tudo isso na construção de alternativas, em que o outro seja mais do que um estranho, passando a ser mais um na luta pela transformação, é nosso trabalho. Árduo, mas é. Assim como em 68.
Se existem tantos instrumentos ideológicos de manutenção das coisas, criemos os nossos mecanismos também ideológicos para mudança. E mais. Utilizemos os espaços “abertos” para contra-atacar. As frases de 68 marcaram a história, como disse antes, pelo seu caráter sintético. Façamos também as nossas.


...porque, por fim, percebemos a vida como possibilidade e não como determinação

Como sabem, a frase acima não é minha. É do grande Paulo Freire, um dos intelectuais que mais influencia o movimento extensionista e – com menos força – o movimento estudantil. A idéia de que o mundo está sendo construído e que temos responsabilidades nessa construção, sobretudo na atuação junto aos movimentos sócias, não é nova, mas continua atual.
Há 40 anos, estudantes e trabalhadores foram às ruas para mostrar que é possível viver a história como um movimento, e, por isso, dinâmica e problemática, conflituosa. A construção das utopias do cotidiano, que nos fazem caminhar, são mais importantes do que nunca, seja nas entidades gerais e de base, seja nas pesquisas, seja junto às comunidades e aos movimentos sociais, seja na nossa casa.
Independentemente do (aparente) desfecho dos acontecimentos da França, o fato é que nunca seremos os mesmos depois do que lá ocorreu. Continuamos a buscar referências, às vezes inconscientes, naquele momento histórico, e isso, para um materialista histórico-dialético, demonstra que também fazemos parte desta história da crítica, da contra-hegemonia, do questionamento da Universidade e proposição de uma Universidade Popular.
Somos herdeiros, e responsáveis na continuação de Maio de 68. Para aqueles que entendem isso da forma superficial, argumentando que não é possível “repetirmos”, por conta da conjuntura, da correlação de forças que é diferente, etc. já exponho a minha limitação: não quero repetir 68, quero construir junto com os companheiros e companheiras vários Maios, Junhos, Agostos, Setembros...

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